Análise Técnica e Tática de Júnior Cigano vs. Francis Ngannou

Kauê Macedo analisa Júnior Cigano vs. Francis Ngannou
Francis Ngannou e Junior dos Santos na pesagem (Foto: Reprodução)

Francis Ngannou e Junior dos Santos na pesagem (Foto: Reprodução)

Muitas boas lutas podem sair desse grupo de assassinos formados pela atual casta do peso pesado no MMA, mas a que considero mais intrigante acontecerá nesse sábado, na luta principal do UFC on ESPN 3: Francis Ngannou vs. Júnior Cigano.

É uma luta extremamente complexa, digna de luta principal de um grande evento. Vai ser difícil chegar a alguma conclusão precisa e confiante, mas faremos mesmo assim.



Análise técnica

Júnior Cigano

Devido a jovem história do MMA, Júnior Cigano pode ser considerado um dos melhores pesos pesados da história do esporte. Cigano detém um cartel no UFC de 15 vitórias e 4 derrotas, algo impressionante para um categoria tão volátil. Além disso, foi campeão da categoria e chegou a defender o cinturão uma vez. Em seu cartel, conta com vitórias sobre Cain Velasquez e Stipe Miocic, dois dos três melhores pesos pesados de todos os tempos.

Cigano joga da média para a longa distância na trocação. Tem entradas rápidas, principalmente com o jab (que é aplicado, inclusive, no corpo), mas mantém a distância para ficar fora do raio de ação do adversário. Essa manutenção de distância é ainda mais eficaz devido a um bom trabalho de pernas feito quando a luta está acontecendo perto do centro do octógono, uma capacidade técnica que mostra um ponto positivo de sua mentalidade exageradamente boxeadora para um lutador de MMA.

Cigano tem a capacidade de capitalizar com golpes extremamente contundentes em espaços pequenos e ângulos difíceis, principalmente com cruzados e uppercuts. Sua estreia no UFC nocauteando Fabricio Werdum com um uppercut é um excelente exemplo, mas ainda mais é seu nocaute com um cruzado de esquerda sobre Gilbert Yvel, quase dez anos atrás.

Outro ponto positivo da mentalidade boxeadora de Cigano é que ele trabalha muito mais golpes no corpo que a maioria de seus adversários. A aplicação dos golpes vem desde a longa distância através de sua movimentação, é projetado na média distância e aplicado perto da curta, e rapidamente saindo do raio de ação do adversário, inicialmente com head movement, e posteriormente com footwork.

Júnior Cigano tem um problema gravíssimo em seu sistema defensivo, a quebra de clinch na grade. Ele saí do clinch (mas ainda encostado na grade) com seu corpo de lado em relação ao adversário, parecido com a postura do shoulder roll, e com suas mãos completamente baixas. O grande problema é que ele sequer utiliza o ombro para se defender e sua guarda fica completamente exposta, algo que pode ser fatal em qualquer divisão de peso, especialmente nos pesados. Stipe Miocic conseguiu seu nocaute na segunda luta com Cigano dessa forma, mas o erro é tão constante que Miocic também aproveitou bem essa abertura na primeira luta e causou muito dano, assim como fez Cain Velasquez na segunda e terceira luta com o brasileiro.

Quando enfrentou Alistair Overeem, Cigano adotou um ritmo muito mais lento, escolhendo muito os golpes que aplicava e impondo muito menos pressão, tendo conectado apenas 8 golpes no primeiro round. O resultado disso? Cigano deixou muitos espaços para Overeem conectar e praticamente foi decapitado por um cruzado de esquerda do holandês.

Claro que overhands e cruzados garantiram a Cigano vários de seus nocautes, mas eu considero o jab como o golpe mais importante de seu arsenal, principalmente em sua atual fase na carreira.

Em minha visão, Cigano já passou por três em sua carreira.

Na primeira, era um ótimo boxeador, com nível técnico acima da média na trocação e uma capacidade impressionante de levar seus oponentes a nocaute. Essa fase conta com vitórias espetaculares por nocaute sobre Fabrício Werdum, Stefan Struve, Gilbert Yvel e Cain Velasquez, a vitória mais importante de sua carreira e que lhe rendeu o cinturão dos pesos pesados, além de massacres que, surpreendentemente, foram para a decisão, como contra Roy Nelson e Shane Carwin.

Na segunda, Cigano se tornou mais apático ao ter seu ponto fraco exposto. Ele se tornou menos agressivo, talvez para tentar se defender mais (algo que deu muito errado), e escolhia muito os golpes. Apesar dessa forma ter lhe rendido uma vitória por nocaute sobre Mark Hunt e uma vitória por decisão na guerra travada durante 5 rounds com Stipe Miocic, também lhe resultou em 3 duras derrotas, dois massacres de Cain Velasquez e um nocaute para Alistair Overeem.

A terceira fase é de um Cigano mais calculista, mas que coloca mais pressão. Ele tenta ditar o ritmo da luta mais alto, mas sem ser tão agressivo. Por ser um lutador mais atlético que boa parte da divisão, ele tem condicionamento físico para lutar 5 rounds em um ritmo bom, algo que pouquíssimos pesos pesados conseguem. Até o momento, esse Cigano venceu duas decisões bem dominantes, sobre Ben Rothwell e Blagoi Ivanov, dois nocautes técnicos, sobre Tai Tuivasa e Derrick Lewis, e uma derrota por nocaute para Stipe Miocic, que estava em sua melhor fase da carreira.

Seus jabs foram fundamentais nas últimas vitórias, especialmente sobre Ben Rothwell e Blagoy Ivanov. Os jabs de Cigano tem várias funcionalidades importantes, principalmente a manutenção de distância e a pontuação dos juízes. Quando aplicados no corpo, algo bem frequente, servem também para minar o condicionamento físico de seus adversários, o que só aumenta a diferença que, normalmente, já é do Cigano e por uma margem relevante.

Francis Ngannou

Francis Ngannou é um ser que tem a morte nos punhos. Ninguém na história do peso pesado teve tanto poder de nocaute quanto ele. Anthony Johnson, ex-peso meio-pesado do UFC, é o único que se compara. Ainda assim, deixo o título de maior pegador da história para o camaronês. Ngannou teve uma evolução meteórica no UFC, deixando de ser apenas um sujeito grande que batia pesado para, em apenas dois anos, decapitar o veterano Alistair Overeem. Atualmente, é o terceiro no ranking dos pesos pesados da categoria, atrás apenas do campeão Daniel Cormier e do ex-campeão Stipe Miocic.

Ngannou tem uma guarda bem diferenciada, para não dizer esquisita. Sua mão direita está sempre alta, na altura do queixo, mas um pouco mais afastada para o lado, o que faz ela ter duas utilidades: a primeira é proteger o queixo, mesmo que com menos eficiência do que se estivesse com a mão mais próxima do rosto, mas isso é justificado pela segunda utilidade, ter a mão direita sempre engatilhada para golpear com muita contundência, assim como Dan Henderson fazia.

A mão direita mais alta de Ngannou segue a mesma lógica, proteger e estar pronta para atacar. Pode não ser a mais eficiente defensivamente nem a mais imprevisível ofensivamente, mas quando encaixado, é fatal.

O jab de Ngannou tem um propósito diferente de Cigano, ele utiliza mais para fintar e, principalmente, constantemente medir a distância, para estar sempre no raio de ação que sua mão direita conecta com mais facilidade.

Dentre todas as ferramentas de Ngannou, as mais poderosas estão em sua mão direita, mas a esquerda não deixa de ser mortal, seu nocaute sobre Alistair Overeem foi um dos mais assustadores da história do MMA e veio justamente de um uppercut de esquerda.

O direto de direita é uma arma perigosíssima. Ngannou ostenta uma envergadura de 2,11m e consegue alcançar muitos sem ser tocado, fora que é necessário, além de técnica, muita coragem para tentar contragolpear o camaronês, visto o constante perigo de ser nocauteado. Seu direto é aplicado da média distância e não é tão técnico quanto poderia ser, porque não é tão reto quanto recomendado, o que diminui a potência e eficácia do golpe (além de também afetar a distância necessária para golpear), mas essa potência é compensada pelo seu quadril solto, que ajuda a jogar todo o peso do corpo na ponta do punho.

Cruzados e overhands também são extremamente perigosos, mas não tão bem aplicados. Existem exemplos deles funcionando muito bem mesmo sem tanta técnica, como contra Custis Blaydes e Andrei Aslovski, mas também tem exemplos que a falta de técnica prejudicou, como contra Stipe Miocic e até mesmo Derrick Lewis.

Uma variável a respeito de Ngannou é o ritmo que ele impõe a luta. Se analisado com atenção, é possível observar três ritmos diferentes que podem ser exemplificados em três lutas diferentes.

O primeiro ritmo é calculista e tenta escolher melhor os golpes, afim de dosar o condicionamento físico e colocar mais potência nos punhos. Apesar do pouco tempo de luta para observar esse ritmo, ele se mostrou bem eficaz e garantiu a maior vitória da vida do camaronês, quando nocauteou o veterano Alistair Overeem.

O segundo é mais agressivo, busca incessantemente o nocaute e acaba cometendo mais erros. Ngannou lutou assim na primeira metade da luta contra Stipe Miocic e foi frustrado pelo bom boxe do ex-Golden Gloves, além do wrestling de alto nível.

O terceiro é apático e paciente demais, talvez até assustado. Foi o que resultou na pífia performance contra Derrick Lewis, garantindo um antes improvável title-shot eliminator ao Black Beast.

A última luta não deu margem para análise porque acabou em apenas 26 segundo devido a uma lesão no joelho do ex-campeão Cain Velasquez, mas a penúltima, contra Curtis Blaydes, tem seu valor analítico, apesar de ter durado apenas 45 segundos.

Essa luta tem valor para analisar pois é mais fácil de padronizar o estilo de Ngannou em um ritmo específico, que é o mais calculista e oportunista, sempre em busca de uma brecha para o nocaute e não hesitar em tentar.

Análise tática

É importante ressaltar a diferença de envergadura nessa luta. Ngannou tem uma boa vantagem de 15 centímetros sobre Cigano, são 2,11m contra 1,96m. Isso deve dificultar o jogo de distância.

Francis Ngannou novamente enfrentará um boxeador tecnicamente superior, lembrando que o retrospecto não é favorável, apesar de todas as diferenças.

Um boxeador experiente, como Miocic e Cigano, tem uma movimentação mais fluída em todo o corpo, tanto no footwork quanto no head movement. Boa parte do sistema defensivo de Miocic foi eficaz, sobretudo, justamente por causa da movimentação de pernas e cabeça.

Ngannou desperdiçou muitos golpes contra Miocic, tentando um total de 113 golpes e acertando apenas 21, uma margem baixíssima de 18%.

O problema não foi apenas ofensivamente, mas defensivamente também. Miocic, por outro lado, tentou um total de 95 golpes e conectou 70 deles, tendo uma ótima precisão de 73%.

Essa estatística é importante na análise em dois pontos, um para cada lutador.

É importante para analisar Ngannou porque ele nunca acertou proporcionalmente tão poucos golpes em sua carreira no UFC, nem nunca foi tão golpeado, mesmo levando em conta a proporção de tempo nas lutas.

É importante para analisar Júnior Cigano porque ele sempre conectou muitos golpes. Em suas últimas seis lutas, a menor precisão nos golpes de Cigano foi de 40%, justamente contra Miocic (na primeira luta), onde ele conectou 123 golpes de 303 lançados. A precisão mais impressionante foi contra Bem Rothwell, onde ele conectou 157 golpes de 247 lançados, acertando 63% dos golpes.

Esse volume de golpes é algo que Ngannou não está acostumado, pois nem mesmo Miocic, a luta em que mais recebeu golpes, passou de 100 golpes lançados por parte do adversário, enquanto Cigano tem conectado mais de 100 sem muitas dificuldades.

Cigano tem que manter a guarda alta, mas também trabalhar o head movement. O segredo para sua vitória está na estratégia adotada por Miocic, mas sem utilizar wrestling ou clinch.

O clinch não é uma opção para Ngannou porque diminui muito sua capacidade de por potência nos golpes para gerar poder de nocaute. Isso acontece simplesmente por limitações de espaço, não é tão fácil gerar poder em um golpe quando o adversário está praticamente colado ao corpo do lutador, e é ainda mais difícil conectar um bom golpe. É algo que depende de uma boa técnica aplicada do lutador junto com uma falha defensiva do adversário, como aconteceu em Dan Henderson vs. Maurício Shogun II e Daniel Cormier vs. Stipe Miocic.

Apesar de limitar a geração de poder e diminuir as chances de nocaute, Cigano também não deve adotar essa estratégia, principalmente porque ele apresenta diversos erros defensivos na saída do clinch, e erros defensivos são inadmissíveis para quem deseja vencer Ngannou. Sério, inadmissíveis.

É importante muita frieza ao analisar uma luta de pesos pesados. Ngannou é um ser humano assustador com o maior poder de nocaute da história do esporte, mas isso não faz dele o melhor lutador. São vários os seus problemas técnicos e táticos, alguns deles foram aqui expostos.

Esse poder de nocaute sobrenatural de Ngannou atraí todos os olhares para ele e o fazem ser superestimado tecnicamente. Isso é normal nos esportes de combate e aconteceu, inclusive, com Mike Tyson.

Júnior Cigano é obviamente o melhor lutador. Sua técnica na trocação é superior em diversos aspectos, menos em contundência e, possivelmente, velocidade.

Curiosamente, Conor McGregor nos ensinou uma lição sobre isso ao nocautear José Aldo: “Ele é potente e rápido, mas precisão derrota potência e timing derrota velocidade… Isso são fundamentos”.

Obviamente, Ngannou pode nocautear qualquer ser humano do planeta. Também é notável que Júnior Cigano dispõe de diversas falhas defensivas (novamente, algumas foram expostas aqui), o que faz de um nocaute de Ngannou, estatisticamente, ser a opção mais provável de acontecer.

Para colocar no papel, avalio as probabilidades da seguinte forma:

40% de chance de Ngannou por nocaute

30% de chance de Cigano por nocaute

28% de chance de Cigano por decisão

2% de chance de Ngannou por decisão

Então, de certa forma, vejo a possibilidade mais provável sendo o nocaute de Ngannou, mas, estatisticamente, vejo mais chances de Cigano vencer a luta.

Assim como Cigano, Ngannou também dispõe diversas brechas em seu sistema defensivo que podem ser aproveitadas por seu adversário. A diferença é que Ngannou precisa da brecha para conectar um golpe final ou uma combinação que leve ao nocaute, enquanto Cigano precisa de brechas para conectar cada um de seus golpes. Ou seja, a menos que a luta acabe em segundos, é mais provável que Cigano aproveite mais (em quantidade) as falhas defensivas de Ngannou do que o contrário.

Não aconselho ninguém colocar dinheiro nessa luta. Eu, particularmente, não gosto de apostar em pesos pesados, ainda mais em uma luta dessas.

Encerro essa análise com o mesmo pensamento que coloquei na análise que escrevi apostando em Miocic para vencer Ngannou um ano e meio atrás:

Pensando em um retrospecto recente, não faltam exemplos de lutadores com mais potência que venceram lutadores tecnicamente superiores. Porém, ao observar a história das artes marciais em um período muito mais longo, aqueles que venceram graças à força e a potência são raríssimas exceções, enquanto os mais técnicos prevaleceram e escrevem a história que conhecemos hoje.

Vou ficar, novamente, do lado da técnica.

Palpite pouco provável, mas minimamente embasado. Vou de Júnior Cigano por decisão.



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Jornalista freelancer. Matérias publicadas em Nocaute na Rede, Correio Paulista, Medium, Shion Magazine, NetFighter e Pitaco Esportivo. contato: [email protected]
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